segunda-feira, 26 de janeiro de 2015

ELEGIA AO AMOR, AO VINHO E AO PRAZER





RUBAIYAT
VERSÃO JMA     2015



Nota - o blogue não aceita a formatação original dos poemas, alterando o modo de leitura. 


Download do texto integral do blogue em »
http://www.homeoesp.org/livros_online.html





***

BREVITAS VITAE

"A vida é demasiado breve para que se beba mau vinho" (Goethe)



***




todos os que me conhecem

                        sabem que não ciciei orações
aos ouvidos das divindades

sabem também
que nunca ocultei meus vícios e os meus mais terríveis defeitos
nem os mais torpes desejos      nem impiedades
nem os intensos cios

por vezes humano
outras animal sem tino
sem destino e sem razão

não estou certo se existe justiça divina
ou misericórdia

existam ou não estou em paz       confiante e indiferente

porque sempre fui autêntico
apesar de imprevidente



***



o que é que valerá mais
sentar-me num bar

copo na frente
a examinar a minha consciência
ou

       prostrar-me numa igreja
com o pensamento decadente
e a alma ausente?

hoje
pouco me preocupa saber se deus existe ou não
- porque sei que nunca o saberei -
e se no seu querer que destinação me reserva
se é que para mim algo guarda
ou me ampara



***



sejamos compassivos
para com os que se embriagam
                                                  de vinho e mulheres nas vielas da perdição

também nós feitos de pó
temos defeitos

se pensarmos nos pobres
nos deserdados
nos que com frio tremem    
em todos os infelizes que em abundância                   gemem
nos que à fome morrem    
sem voz

          sentiremos a felicidade a paz e a tranquilidade
baterem-nos à porta com a doçura
de quem nada procura

porque não somos nós



***



se és sábio não semeies o sofrimento

domina-te sempre
controla-te a cada momento

não te abandones à ira
cólera
e vingança

queres ter na alma a paz?
                                   então sorri
ao destino que te fere
mas não firas ninguém

que à espada morre
quem com espada mata

  não comandes
nem te deixes comandar

e só trabalhes
se fores obrigado a trabalhar

e tu jovem sem capataz
bebe e ama
até que mais não sejas capaz



***



faz por seres feliz hoje
o que é que te trará o dia de amanhã?
alegria ou tristeza
calmaria ou borrasca
vida ou morte?

agarra uma garrafa de vinho
o colo de uma mulher

senta-te à luz da lua
e bebe

pensando que amanhã
talvez seja em vão
que a lua te procure



***



de quando em vez
os homens lêem a bíblia
o corão
o guitá
livros que o pensamento consagrou

mas quantos se deleitam diariamente com a sua leitura
quantos cumprem os seus decretos
quais conhecem os evangelhos?

nos bordos de todos os cálices
recheados de vinho
nas bordaduras dos lábios
das mais belas donzelas
triunfa cinzelada
uma secreta verdade
a todos dada a saborear



***



o vinho é o nosso tesouro
os bares os nossos palácios

sede embriaguez
nossos fiéis companheiros

e o doce hálito das mulheres
o elixir que nos faz viver

ignoramos o medo
as inquietações
porque sabemos
que as nossas almas
os nossos corações
os nossos cálices
e nossas roupas manchadas

nada têm a temer
do pó
da água
do fogo



***



neste mundo dá-te por contente com raros amigos

não inspires a mesma simpatia que alguém te inspirou

escolhe atento
os que te hão-de acompanhar
e se alguém tiveres para amar
aprende a ser isento
e esquivo

antes de apertar a mão a um homem
pensa se ela não te ferirá um dia

antes de beijares uma mulher
certifica-te que não serás seu escravo



***



esta jarra foi em tempos idos
um pobre amante

que sofria
cativo
o desdém altivo
de uma donzela

as asas da jarra
eram o braço
que rodeava
o alvo pescoço
da sua amada

que por tudo e por nada
o escorraçava



***



como é pobre
vil
e doente
o coração
que não sabe amar
que não se embriaga de amor

a melancolia da solidão
de um corpo plangente
nu e só no esplendor da noite


se no mundo
há gente que não ama
certamente não entende
na ausência do amar
a palavra deslumbrante do
 sol
a leve doçura do
   luar
belo a deslizar
a perder de ver
pelo verde vale do prazer



***



a minha juventude regressa hoje
com o vigor das giestas amarelas
a anunciar a primavera
com todas as suas flores

serve-me vinho amada
vinho cor de rubi
vinho de todas as cores
vinho ardente

vinho      vinho
novo
velho
vinho vinho

não sou exigente
não importa qual
quero vinho
urgente
e um beijo candente

talvez               até a melhor colheita
me pareça        tão acre
como a vida      maltratada
e pela dor         pisada



***



terás algum poder sobre o teu destino?
imbecil
tolo
criatura frágil e inquieta

por que te amedronta o porvir
por que tens medo do que há-de vir?

julgas-te sábio um entendido
que sabes tu?
    asno

goza o momento
goza o presente

porque o futuro
é como quem mente

que te pode trazer o futuro
alegria ou sofrimento?

quem o sabe e se o sabe
nunca to dirá seguramente



***



aqui está a estação inefável
eis a estação da esperança
em que almas sedentas de outras almas
procuram uma quietude perfumada

cada flor será por acaso
a excelsa mão branca de moisés?

cada brisa será por ventura
o leve hálito de jesus?



***



pelo caminho oblíquo
seguro
não vai o justo
nem o iníquo
não vai o homem
que o fruto da verdade
não colheu

se porventura o colher
da árvore da ciência
ouve
ele sabe
que os dias passados
e os dias que estão para vir

em nada se distinguem
do infeliz primeiro dia
da criação



***



para lá dos limites da terra
para lá dos limites do infinito
procurava eu o céu e o inferno
e nada vi

uma voz séria e avisada murmurou –

o céu              o inferno
estão em ti



***



nada                  
me preocupa
nada
me afecta

ergue-te
dá-me vinho

néctar dos deuses

a tua boca
esta noite
como de outras vezes

a rosa mais formosa
do céu
e da terra

serve-me vinho
rubro como o teu rosto
a tornar leve e ligeiro
o meu arrependimento
e alados os meus remorsos
como leves são os teus sorrisos



***



a aragem da primavera refresca e aviva o corpo das rosas e na sombra anilada do horto acaricia o rosto da minha amada

na plenitude que vivemos esqueço o nosso passado
tão sedutora
  é a amorosa doçura do agora



***



poderei abarrotar de pedras o oceano

porque faço eu o que não devo?
sinto desprezo por ateus
e antipatia pelos devotos

há por aí quem me certifique de que irei para o céu
ou de que para o inferno na morte partirei?

o que é o inferno
e o céu?

conheces alguém que tenha visitado
essas regiões misteriosas e incompreensíveis?


se há que nos diga
se não
  que se cale

quem fala não sabe
quem sabe não fala



***



sendo bebedor ignoro quem te modelou ó enorme jarrão

só sei que feito foste para abraçar três medidas de vinho
e que um dia a morte te despedaçará

então
perguntar-me-ei
por muito tempo

para que foste modelado
por que foste feliz
e porque
já não és mais que pó

e eu aqui



***



fugazes são os nossos dias
correm velozes como a água dos rios

e os ventos secos do deserto


dois dias me deixam indiferente
o ontem que morreu
e que já sepultei

e o amanhã que ainda não nasceu
e que não sei
se e como o viverei



***



quando nasci?
não lembro
o que lembra minha mãe

quando morrerei?
 não sei

ninguém memora
o dia do seu nascimento

nem está apto
a augurar a hora do seu decesso

vem
ó doce amante
quero deslembrar
no embriagamento
a dor da nossa ignorância
do nosso sofrimento



***



costurando
 as tendas
da sabedoria
   caí no fogo da dor
        e fui convertido em cinzas

o anjo azrael         cortou os cabos da tenda

a morte ofereceu         a sua glória
por uma canção



***



por que me angustiam
os meus muitos pecados?

não será inútil a minha melancolia
 a discórdia interior?

que existe depois da morte?

o nada ou
a misericórdia

vá homem
vive em paz



***



nos mosteiros
   igrejas
    sinagogas
   mesquitas
refugiam-se os débeis
temerosos do inferno

quem experimentou
o poder de deus
não cultiva no seu coração
as funestas sementes
do medo da súplica
do terror da oração



***



na primavera costumo sentar-me à sombra de uma árvore frondosa junto a um campo de flores silvestres

quando esbelta moça me oferece húmido e rosado seu cálice de vinho e amor não quero saber de minha saúde
nem me preocupa a salvação

na verdade
seria menos que um cão
se estivesse com tal apreensão



***



o mundo interminável –
um grão de poeira no vazio

toda a ciência e saber
que o homem acumulou –
palavras

as gentes
os animais
e as flores
dos sete climas –
sombras

a tua contínua meditação –
nada



***



mesmo que acredites ter solucionado o mistério da criação diz-me –
qual será o teu destino?

mesmo que dês por garantido
ter desnudado a verdade
de todos os seus véus
diz-me –

será que conheces o teu destino?


mesmo que admitas a felicidade
de ter vivido durante cem anos
e que outros cem anos te aguardam
diz-me –

mas será que conheces o teu destino?



***



capacita-te
de que um dia

um qualquer dia

a tua alma abandonará o corpo
e serás arrastado por um véu flutuante
entre o conhecido
e o desconhecido


enquanto esperas

sê feliz
bebe ama

não sabes donde vens
nem para onde vais


saberás pelo menos
quem és?



***



aqueles que temos por maiores

sages sábios
filósofos
caíram no abismo da ignorância

no entanto esses brilhantes opacos foram as lanternas de referência das suas épocas jazentes

mas afinal que fizeram essas sumidades?

pronunciaram algumas frases esotéricas

escreveram alguns textos obscuros

deitaram-se e

adormeceram para sempre



***



o coração disse-me –

quero saber

quero aprender
ensina-me
tu que tanto estudaste
que mergulhaste
em livros aos milhares

disse eu a primeira letra
e a minha alma respondeu-me –
sei
o um
é o primeiro
do número
que
nunca acaba



***



os mistérios

ah os mistérios

mistérios
ninguém os pode entender
como também
ninguém é capaz de ver
o que se oculta
por detrás das aparências

todas as nossas moradas
são temporárias

excepto a derradeira
na terra que nos há-de comer

bebe vinho e ama
basta de palavras inúteis
em lodaçal escritas



***



a vida é um jogo insípido
com dois prémios certos –
dor e morte

feliz a criança que morreu ao nascimento
mais feliz ainda aquele que não chegou a nascer



***



na feira que atravessas           teatro da vida
não intentes encontrar amigo

tão pouco busques refúgio
porto seguro

aceita a dor com alento
sem a esperança de um bálsamo
que não existe

sorri à adversidade
não peças
nem impeças ninguém
que sorria para ti

estarás a desperdiçar o teu tempo



***



que a roda da fortuna gire
gire
 e volte a girar

que rode sem parar

sem esperar pelo juízo dos sábios


abdica de contar os astros
que pelo céu sem fim se amplificam


medita nesta certeza –
hás-de morrer
não voltarás a sonhar

os cães vadios
devorarão o teu corpo
ou então         a cada hora
serão os muitos vermes
da sepultura



***



estava com sono e a sabedoria disse-me –
as rosas da felicidade nunca perfumaram
nem nunca irão perfumar o sono de ninguém

em vez
de te abandonares
a este irmão da morte
bebe vinho ama
tens para dormir a eternidade

porque o sono

é uma morte temporária
e a morte

um sono
para sempre prolongado



***



o criador do céu
e da terra
ultrapassou-se displicente
quando criou a dor
e a insuflou em toda
esta gente

lábios como rubis
cabelos perfumados
rostos perfeitos
quantos sois vós na terra?



***



não consigo contemplar o céu


   tenho os olhos minados de lágrimas

aprazíveis centelhas
          são os fogos do inferno
              confrontados com as chamas
                       que me corroem

o paraíso

para mim

não é mais

do que um instante

um agora

de paz



***



sonho e sono sobre a terra
 sono debaixo da terra

sobre a terra
e por baixo da terra
corpos que jazem

para onde quer que vá
onde quer que fique
o nada
um deserto de nada


homens que chegam

homens que se vão

que partem

para a terra do nada



***



antigo mundo

atravessado a galope

pelo cavalo branco do dia

pelo cavalo negro da noite


és o palácio triste

onde cem reis

sonharam com a glória

e cem monarcas

o amor almejaram

e todos amanheceram        ó lamento

no seio da mais intensa dor

e no meio do maior pranto



***



o vento que veio do sul secou a esplêndida rosa para quem o rouxinol cantava

devemos orar pela sua morte ou por nós?

quando a morte
   secar os nossos corpos
  outras rosas estarão para vir
 irão nascer
e alegremente hão-de sorrir



***



abdica da recompensa que ontem merecias e que te não foi concedida

sê feliz
ama


não deplores seja o que for

que o teu coração a nada se prenda


tudo o que te há-de acontecer
está escrito no livro
escrito no alfabeto da verdade
folheado pelo vento
e soprado pela eternidade



***



quando vos ouço falar da felicidade que é pertença dos eleitos
limito-me a dizer –
eu só confio no vinho
e nos lábios da minha amante

quero metal sonante
e não quero
vãs promessas

o ribombar do tambor só apraz à distância



***



bebe

o teu vinho
beija

a tua amada
único caminho

só há um caminho


para a vida eterna

o vinho e o amor
vão
doar-te
a juventude
perdida

divina a estação
que perdura
das rosas
do vinho
do amor
amizade pura

goza o momento que te escapa
e que é a tua vida
  férias que a morte te dá



***



bebe vinho

ama


estima os amigos sinceros

muito tempo terás
para dormir sepultado

sem vinho
sem mulher
sem amigo
sem amar

ouve este segredo
que do coração te confio –


as túlipas fanadas
nunca irão ressuscitar



***



cochicha a argila ao oleiro –
lembra-te homem
que és hoje como eu fui
não tornes a violar o que já violastes

cuida de mim
não me maltrates



***



oleiro se és assisado não magoes a argila com que adão foi modelado

que tens tu sobre a roda
a mão do rei
o coração de príncipes?


que fazes homem?



***



a papoila colhe a sua cor púrpura do sangue de um rei morto

a violeta nasce da excelsa beleza da face de um adolescente



***



séculos e séculos
perdem-se nos tempos
enquanto
se sucedem auroras
crepúsculos
e os astros caminham
pelos céus

cuida da terra que pisas
que cavas para semear
pode ser
pode acontecer
que o torrão
que vais sangrar
para deitar a semente

tenha sido outrora
o olho lânguido
de um adolescente



***



um narciso na margem do ribeiro oscila ao sabor da brisa

não brotarão as suas raízes dos lábios de uma mulher?

que os nossos passos sejam leves acariciando a erva tenra
frágil
que cresce viçosa no lameiro
 fonte de flores variadas

   talvez tenha nascido das cinzas
   de belos rostos onde já vingou
   a claridade das túlipas encarnadas



***



ontem

um oleiro
laborava

na sua roda

modelava um cântaro

e o que modelava
eram
crânios de nobres

e mãos de mendigos



***



bem e mal

combatem

pela primazia

neste planeta           lobos e predadores

ladrões             mentirosos

criminosos        políticos ranhosos


o céu não é responsável
pela celebridade
desgraça
ou felicidade
que o destino nos reserva

não lhe agradeças
nem o condenes
vás por onde fores

já que nada se preocupa
    com as tuas míseras alegrias
ou com as mais terríveis das dores



***



se lavrado o teu coração o semeaste diligente com a semente do amor então não viveste inutilmente
se procuraste ouvir atento a voz de deus e a guardaste no teu pensamento não foi inútil o teu viver
como o não foi se sorrindo e amando ergueste a tua taça de vinho em homenagem ao prazer



***



age prudente

caminhante

arriscado

é teu caminho

e afiada a
espada do destino


evita as amêndoas doces
da orla das estradas

têm veneno as danadas



***



um jardim

uma jovem esbelta


uma bilha de vinho

meu anseio

meu azedume
meu paraíso
e meu inferno

mas alguém terá havido
a quem foi dado conhecer
o céu ou o inferno?



***



tu cuja face
     
obscurece

as rosas do campo


tu
cujo rosto

parece


um ídolo chinês

sabes por mero acaso
que o teu olhar malhado
a veludo bordado
na flor de uma vinha
transformou o rei da babilónia
no bispo vicioso
que no jogo de xadrez
foge da rainha?



***



a vida vai-se esgotando

que resta das antigas cidades?

o mais pequeno dos toques
é letal para a rosa
que pela manhã vai
desabrochando

bebe vinho
ama abraça paixões
      contempla a lua

que tantas civilizações
viu nascer e morrer

e há-de ver



***



oh a voz da sabedoria
diz-me
dia após dia

minuto a minuto –

a vida é tão breve


não me assemelho às plantas
que podadas
voltam a reverdecer


quando morrer
nem raízes nem sementes
me farão reviver



***



retóricos filósofos sábios silentes
     morreram

e não se entenderam
sobre a essência

do ser

e do não-ser

incomoda-te que te chamem ignorante?


paciência


continua a saborear
os melhores vinhos
os lábios mais belos
esquece se pecas      os pecadores


esses sabedores
que se confortem
com suas mãos
e com uvas secas



***



o meu nascimento nada trouxe de diferente nenhum bem ou mal ao mundo a mim indiferente

a minha morte não abreviará o seu tempo não diminuirá o seu brilho  nem o seu tamanho

não há ninguém
em toda esta multidão
que me elucide

por que vim          para que vim          porque terei
de partir

sem que de alguém
o peça ou requeira



***



tombaremos pela vereda do amor

o destino irá esmagar-nos

oh bela
oh donzela
oh cálice encantado
oh agrado do meu sentido

levantai-vos

dá-me a chama dos teu lábios
dá-me o teu líquido inviolado
antes que o fim de tudo
venha sem ser esperado
e me transforme em nada



***



à felicidade

só lhe conhecemos o nome

um rótulo numa jarra opaca

o meu amigo mais velho

é o vinho novo

acarinha com os olhos
e com os dedos das mãos
aquilo que falta nos faz
e que nunca nos burla –
a jarra transbordante
do sangue do vinhal



***



a cidade

é agora refúgio de gazelas

leões deambulam pelos jardins
onde antes tocavam músicos

tudo dorme
agora num outeiro
onde pastam burros domésticos



***



não busques cego a felicidade

a vida é breve como um suspiro


as cinzas de reis e príncipes     condes e marquesas voam
no redemoinho vermelho que contemplas

os governantes apodrecem nas catacumbas da mentira
do roubo e do vício          os ricos e poderosos apodrecem nos jazigos

o universo é um sonho
a vida é um sonho



***



senta-te e bebe

goza a felicidade
    que ao rico não foi concedida

bebe              ele amealha
ama               ele trabalha


escuta os alaúdes dos amantes
que na sua harmonia e melodia
são os exactos salmos de david


não te entranhes no passado
não fiques ansioso com o futuro


que os teus pensamentos o teu lucro
esteja sempre       presente
no eterno agora       na eternidade
enquanto a ambição              para ti jaz
na tumba dos insensatos


este é o segredo da paz



***



medíocres        acanhados  e orgulhosos
estabelecem
entre o corpo e a alma
diferenças que não entendo

eu só vos posso dizer
que o vinho
faz findar o medo
e nos dá
a tranquilidade perfeita

e que amar
nos dá felicidade
consequência
  da ausência do pensamento


meditação e contentamento



***



que mistério é esse

do movimento dos astros

que giram e giram

no espaço sem fim


que mistério


agarra-te com força

à corda da sabedoria

vive o teu dia

beija os lábios da moça

que com seu perfume

te inebria

bebe do vinho
da alegria


não há mistério



***



não tenho medo da morte

mais

quero este acontecimento
inquestionável inelutável

que me impuseram
no dia do meu nascimento

nascença

afinal que é a vida?

um benefício que não escolhi
e que devolverei com indiferença



***



a vida passa
veloz
como uma caravana

pára de cavalgar
e procura ser feliz

moça virgem
donde te vem essa tristeza?

bebe um pouco deste vinho

dá-me de beber

já se declaram
os primeiros sinais da noite


vem



***



ouço dizer          às vezes oiço
que os amantes do vinho
serão condenados
ao luminoso inferno

os bebedores juntos com os fornicadores

chamas enxofre dores

verdades não as há
mas há mentiras
que são tão claras
que ninguém as pode negar
pecado original fogo infernal limbo lateral


se todos os que se embriagam
se todos os que amam
vão para o inferno


o paraíso está quase vazio



***



já sou velho sim velho
mas tenho amor para dar

a minha paixão por ti
mata-me de amor e desejo

não deixo por isso de alagar
o meu cálice de vinho

tal é o meu sentimento
a intensidade de amar

que sem piedade o tempo
anulou o discernimento

da minha razão


florescendo o leito e
fazendo murchar
sem caridade
a rosa que brilhava
no meu peito



***



tu que me atormentas ó imagem de uma nova alegria
vozes de amor encantadoras que me atentais

vejo a minha amada e só a sua doce voz oiço

deus há-de perdoar-te diz ela suave


não aceito esse perdão
não pedi qualquer absolvição



***



um pedaço de pão negro duro de semanas

um pouco de água fresca

a sombra de uma árvore

e teus olhos  escuros rasgados

em perfeito corpo implantados



não há quem eleja

imperador mais feliz que eu

nem esfarrapado mendigo

que mais triste seja



***



o amor começa carnal obsessivo
 possessivo

porquê tanta doçura
tanta ternura
tantos beijos e promessas
no início?

e continua caminhante receoso da perda
carinhos
afagos e   mimos
tanto deleite e   enlevo
depois?

acaba odioso cansado
entediado

porquê?


se hoje e amanhã
no prazer e gozo
que dilacera       o coração

porquê?



***



haverá um dia em que as nossas almas irão deixar nossos corpos para trás

sobre as nossas pobres e inertes cabeças alguém colocará um ladrilho
uma lápide inscrita que dirá –
aqui jaz
em eviterna paz
quem na taberna
muito bebeu
amou e sofreu


depois
as tuas cinzas misturadas com as minhas
serão modeladas pelas mãos de um oleiro
ou de um pedreiro
a construir um amor perfeito



***


vinho único conforto alívio bálsamo
para um coração que sofre
enfermo


vinho
perfumado a almíscar
vinho
cor de rosas
a florescer num ermo


serve-me vinho
vinho
destruidor
a aplanar
    o inferno ardente
da minha amargura


vinho

e o teu alaúde

de cordas de seda

minha adorada

minha amada



***




tanto se fala de um criador
que criou os seres
todos os entes
céus terras e mares
os homens       suas gentes

para que os criou
ele o supremo senhor
um primeiro
e logo após dois
para os destruir depois?

há os feios e os belos
os com defeitos e os escorreitos
os que nascem ricos e os pobres
os que morrem à fome
à nascença e as crianças
saudáveis e doentes
porquê porquê?

não sei nada
não compreendo nada


não compreendo



***



os homens divertem-se
a errar pelo carreiro
do que pensam ser
o verdadeiro conhecimento

uns buscam-no
outros afirmam
que o encontraram


não


um dia a voz virá
e bem alto clamará –
não há caminho


não há caminho



***



oferece como sacrifício à alvorada o vinho do teu cálice os beijos dos teus lábios túlipas de primavera

oferece ao sorriso rasgado de uma jovem em flor o vinho com que brindas ao amor


bebe e olvida

bebe e ama beber e amar

que o punho da dor
em breve
te irá derrubar



***



vinho vinho
que percorra sem cessar
as minhas

veias

vinho
amor
vinho
que me suba

à cabeça


cálices
silêncio
nada
é verdade


vinho
cálices
depressa
urgente
que envelheço



***



quando for sepultado

do meu túmulo

exalará
inebriante aroma a vinho

forte
tão forte
tão poderoso
que embebedará
quem por ali passar


a tranquilidade emanará
do meu sepulcro perfumado
impedindo os amantes
de dali se apartarem


não conseguirão partir
nem tão pouco afastar



***



no delírio da vida

só serão felizes

os que sábios pensam ser

e os que não cuidam

da sua instrução


tolos



curvei-me sobre todos os segredos

sobre todos os mistérios do universo

e desanimado

refugiei-me na solidão



cegos surdos e mudos

invejando



***



dizem-me –
deixa de beber
não bebas

respondo –

quando bebo

oiço as rosas

as túlipas

os jasmins

e também

o que a minha amada
em segredo e para si
em mim
me diz



***



meditas

em que meditas?

nos teus antepassados?
eles que são pó sobre pó

nas suas virtudes e celebridade?

deixa que sorria

toma este jarro
vamos beber
vamos amar

 e escutar o momento
o silêncio das galáxias
em movimento



***



a aurora alagou de rosas a abóbada celeste

no ar diáfano e puro perde-se a canção do último rouxinol

o aroma do vinho é mais leve e generoso

e pensar que neste momento em cada parcela do mundo
há aluados ensimesmados que sonham com glória honras e reputação


oh como são macios os teus cabelos doirada a tua aura e perfumado teu hálito
 amada



***



amigo não faças projectos
não pesques em lagos secos


tens a certeza de poder colher
os frutos do que agora plantaste
de terminar a frase que começaste?


amanhã talvez possamos estar
tão longe desta choupana
tão distantes desta caravana
que se afasta afasta sem cessar
como os que já abalaram
há milhares de anos
e que ninguém recorda
ou comemora



***



senta-te comigo na margem deste ribeiro esbelta adolescente de rosto trigueiro olho-te com os olhos do futuro que o estar sozinho me concede

e penso com melancolia
o vaso e o cálice
pleno de vinho
que serás um dia




***



há muito há anos que a minha juventude
é no reino da morte jacente

primavera da minha vida
perdida
onde se perderam
primaveras idas


oh adolescência
que passaste
sem que eu
me apercebesse
da brevidade
desta vida na terra
tal como
dia após dia
se amolece a suavidade
da primavera



***



embriaga-te irmão

com todos os perfumes

de vinhos novos e velhos

de todas as mulheres

de músicas

de cores

das flores


não faltes em afagos

agasalho e blandícias

às tuas amadas


olha que a vida é breve

feita de pontes sem margens

e que não tardarás

a afundar-te na terra

como a água dos poços e das fontes



***



a paz neste mundo?
loucura vaidade


eterno descanso?
demência também


depois de morto
um sonho breve

ressurgirás na erva
frágil e indefesa
que todos calcam

ou na flor que no estio
o sol irá queimar



***



pergunto-me –

afinal o que é meu
o que tenho por certo
ou possuo incontroverso?

pergunto-me –

o que restará de mim
depois da passagem
para o reino dos mortos?


a vida é um incêndio
que devasta a floresta imensa
em escassos minutos

chamas vermelhas
cinzas que o vento espalha
e com paciência dispersa -
tal é a existência humana
e a minha essência

cinzas cinzas



***



evidência e dúvida

erro e verdade

palavras vazias como bolha de ar
a boiar no tanque dos nenúfares

com as cores do arco-íris
a cintilar
ou turva
como nuvem a pairar
em dia de escuridão incontida


bolha que é alegoria da vida



***



ao poder dos monarcas
às riquezas das áfricas
prefiro um púcaro de vinho
e mulheres para beijar

no silêncio dos bosques amar
perdidamente um corpo ao luar
numa esteira de linho

admiro o amante que geme de felicidade
de dor e pelo amor que a vida tece
desprezo o cínico que boqueja uma prece



***



ouve este segredo duradouro –

quando o primeiro alvor
alumiou o mundo em trevas
adão era uma criatura sofrida
sentado em venenosas ervas
que almejava pela noite


e clamava pela morte



***



a lua já brilha luzeiros
amanhã o sol iluminará
uma cidade silenciosa e hirta

vinhos a dormir nas bilhas
nas garrafas nas taças
e jovens ingénuas
nas sombras das florestas


ao quadragésimo sétimo dia a morte entrará pelas frestas



***



a ninguém pedi a vida ou pedi?
não pedi para viver insisti?

esforço-me por aceitar
sem gozo nem cólera
tudo o que a vida
tem para me ofertar


partirei sem questionar
sobre tão estranha condenação
que com outros me faz partilhar
este mundo cão



***



não esqueças

colhe todos os frutos

que as tuas mãos

alcancem


vai a todas as festas

banquetes e romarias

escolhe as taças maiores

e as mais belas mulheres


deus não se importa
com teus vícios e virtudes
como atinges o prazer
e com o que fazes do teu corpo

deus tem mais que fazer



***



noite escura

espectros fulgentes
silêncio


a folhagem estática
num ramo incandescente
como o meu pensamento


de uma rosa
exemplo que julgas
ser do teu esplendor
cai uma pétala


onde estarás
neste momento
tu que me brindaste
com o cálice de cristal
e lábios purpurinos
pelos quais suspiro?

nenhuma rosa
se desfolha junto
de quem acaricias
com teu vinho

e sei que ninguém
te pode entregar a felicidade amarga
com que eu te embriagava
no bosquete de
granito e pinho



***



se soubesses


como pouco me afectam
os quatro elementos
e as cinco faculdades
ah se o soubesses

diz-se que alguns filósofos gregos
conseguiam colocar cem problemas
aos seus auditores


que me interessa
que importância tem?
é-me indiferente
o problema dessa gente



serve vinho
sim vinho
toca o alaúde
e que as suas notas
evoquem a brisa
que como a vida foge

ah serve o vinho
beija-me
dá-me o teu carinho



***



quando a sombra da morte aluir sobre mim e os meus dias pelos dedos de uma mão contados chamar-vos-ei amigos meus          

levar-me-eis deitado

quando o corpo que vivo foi se transformar em pó do deserto
ireis moldar um jarro que enchereis de vinho


talvez então oh mistério
me vejais ressuscitar



e seja eu o herdeiro

dono de um novo

e mais justo império



***



pouco sei ou me importa saber


mentira teologia


verdade filosofia



bondade religião



maldade autoridade


mas procuro sempre um vinho de qualidade
- nasci e vivi com ele –

uma cama em desalinho
- não a sei fazer nem quero aprender -


os meus cabelos embranquecem meus ossos enrijecem
sessenta anos


ser feliz
hoje ou nunca


amanhã
talvez já não tenha forças

talvez seja tarde

com a alma vendida ao diabo



***



onde estás tu meu amigo
das noites errantes
das boémias cantantes?

onde estão os nossos amigos
tê-los-á abatido a morte
na sua vida sem sorte?

onde estão agora?
pareço ainda ouvir
as suas alegres canções

estarão mortos
ou ébrios de connosco
tanto
ter vivido?



***



quando eu finar
comigo hão-de morrer
as rosas
os ciprestes
os lábios vermelhos
e o vinho perfumado

nem mais uma aurora
nem crepúsculo
dores alegrias
sofrimento


o mundo deixará de existir


o mundo só é real
e só pode ser vivido
como efeito do pensamento
de limitado cérebro nascido



***



esta é a única verdade –

somos peões
de partida

de xadrez
por deus

jogada

move-nos
em frente
para trás
para os lados
detém-nos

faz-nos avançar
recuar
e depois
quando o quer
vai-nos atirando
um a um
peças sem préstimo
para fora do tabuleiro

para o jogo do nada



***



a abóbada celeste
é um cálice voltado


agitam-se os sábios

agitam-se debalde


que o teu amor
pela tua amada
seja igual ou parecido
ao que o jarro
sente pela taça

lábio com lábio
boca com boca
trocam o seu sangue
em puro enlevo



***



os sábios nunca te irão ensinar seja o que for
mas as carícias dos amaviosos cílios de mulher
irão transportar-te para o reino da felicidade

os teus dias estão severamente contados
em pouco tempo o teu corpo será dado à terra

bebe vinho ama
e afastado procura nele
na mulher e no embriagado
o afago que pelo conhecimento
te não é doado



***



o calor do vinho
é libertação

o calor do amor
arroubo interior


libertação do passado e do futuro


encantado pela luz
quebra os grilhões


caminha com ou sem verdade


ama e bebe
a liberdade



***



quando era criança
na igreja sentado
não rezava qualquer oração
mas voltava com o coração
cheio de esperança

agora e até ver
velho e cansado
quando me sento numa delas
procuro a sombra
o silêncio e a frescura
e deixo-me adormecer



***



na terra matizada caminha alguém
que não é judeu nem muçulmano
católico ou cristão
budista hindu
nem rico nem pobre


não invoca deus
não quer saber das suas leis


não crê na verdade
nem nunca afirma nada


na terra matizada
quem é este homem

triste e corajoso?



***



antes de saber como acariciar
um rosto amoroso como rosas
quantos espinhos não terás de arrancar
da tua própria carne perfurada

olha
esse pente
era um pedaço de madeira

quando a talharam
grande foi a sua dor

mas
hoje o pente
afaga cabelos
brilhantes   perfumados
de uma adolescente



***



há um momento em que a brisa da manhã abre as rosas e lhes sussurra que as violetas já despiram as suas roupas

só é conveniente que viva aquele que se compraz na visão do sono de esbelta mulher

alcança a sua taça
esvazia-a
e lança-a fora



***



tens medo do amanhã

sabes porventura
o que é te pode acontecer?

sê audaz
para que o azar
não justifique os teus temores
e essa tua agonia
que aumenta a cada dia



liberta-te de tudo

não te comprometas com nada

não indagues nos livros

nem questiones outros

que como tu

nadam nas águas da ignorância


o âmago do destino é insondável
indecifrável



***



senhor senhor diz-me

deste-me olhos
para que a beleza
dos seres
das mulheres
me deslumbre


concedeste-me o dom da felicidade

queres que eu abdique sem mais
do prazer das maravilhas do mundo?


impossível senhor
tão impossível como virar uma taça
sem derramar o seu vinho
ou tocar uma virgem
sem colher o seu amor



***



na taberna da minha aldeia
pedi a velhos sábios
notícias dos que já partiram

tio zé gabriel respondeu –
só nos levam a dianteira
é tudo o que sei

tio antónio velhaco ouviu e disse –
eu sei um pouco mais
morreu fodeu-se
e não mais voltará


bebe o teu vinho
bebe
e esquece



***



olha   ouve
uma rosa tremula
no sopro da brisa
o rouxinol canta-lhe
uma breve canção

uma nuvem adormeceu
no céu azul sobre o mar

vamos beber
vamos amar
vamos navegar nas ondas
do prazer

sem lembrar que não tardará
uma rajada a desfolhar a rosa
a levar o tépido canto do rouxinol

e a nuvem e sua sombra
a despertar o sol



***



uma rosa dizia –
do mundo sou a maravilha

será possível
que um perfumista
me faça sofrer?

cantava um rouxinol –

um dia de felicidade
anuncia um ano de lágrimas



***



esta noite ou talvez amanhã
poderei já não existir

tempo terminado
nesta terra

navio

a afundar

chegou o momento
de pedir vinho
e uma mulher para amar


com quem te comparas
com um tesoiro
com um jarro de oiro?

julgas tu moribundo
que os ladrões
irão violentar a tua cova
para furtar um defunto?



***



o amor esse forte sentimento doce e inebriante como o mais puro dos licores
emoção pacífica ou violenta que quando não arrasa e devasta o coração do amante não é amor

as brasas da lareira
darão o calor
de uma fogueira?


noite e dia
em sonho ou vigília
em toda a sua vida
o amante contorce-se
de prazer e dor



***



podes mergulhar na noite
nas profundezas do oceano      subir aos montes
escalar as muralhas dos fortes
caminhar no horizonte
em vão


adão e eva

tão amargo deve ter sido
vosso primeiro beijo
para que nos tenham gerado
tão desesperados



***



bebo vinho como a raiz do salgueiro bebe a água do idílico ribeiro da minha pobre aldeia bebo o vinho pura das nossas vinhas antigas
só deus é deus e ele tudo vê só há um deus e ele tudo sabe tudo prevê não é o que está escrito?

quando me criou não sabia que eu beberia vinho e pelos caminhos da estúrdia com outros boémios vaguearia?


se não bebesse nem amasse a ciência de deus seria um fracasso


poderá ele castigar o que assim criou?
poderá castigar-me a mim
que a ele devo o que sou?



***



o vinho é alforria

de dúvidas e cuidados

de medos e fados

indecisão e embaraços


é o mágico mãos de rubi

que te irá transportar

momento a momento

à terra do esquecimento



***



fecha o teu livro de orações

bíblia

corão
guitá
pensa com atrevimento
e defronta sem temor
o céu e a terra


faz do pobre e do oprimido a tua dor



ama mais que o deus dos homens amou



***



como é débil o homem
fatal e implacável o seu destino
como é dissimulado e insincero

juramentos
juramentos falsos
juramentos que não cumprimos
indiferentes à vergonha e à desonra

frieza da mentira
   na terra da hipocrisia


até eu
por vezes
vivo na insensatez
destempero e desacerto


mas tenho por escusa
estar embriagado
ou apaixonado



***



ouve-me

se este mundo

mais não é do que ilusão

por que desesperas

por que motivo te afliges

e desiludes?


por que pensas noite e dia
na tua infelicidade e na tua dor?


abandona a tua alma

à fantasia das horas

o teu destino já está escrito

na abundância ou na fome

não há para ele apagador

e ninguém para o apagar

porque deus sonha

e se não sonha dorme



***



a auréola que rodeia esta frágil rosa é um sinal do seu aroma ou a débil defesa que na bruma desfeita deus lhe deu?

os cabelos sobre o teu rosto amada serão a noite que teu olhar há-de dissipar?

acorda desse sono amada o sol abrilhanta as nossas taças

bebamos

amemos
que um corpo luminoso
é mais belo que a escuridão



***



decide-te

não contemples mais o céu

rodeia-te de belas
  e aprazíveis mulheres

acaricia-as com
suavidade
e amor


de que suspeitas?


ainda desejas rogar a deus?


muito antes de ti
outros homens lhe dirigiram
fervorosas orações mantras
ave-marias credos petições

já se retiraram para o reino da morte
e ninguém sabe se deus
de longe ou perto
na sua contrição os viu ou ouviu



***



aurora            felicidade        pureza
um enorme rubi
    brilha em cada taça


toma estes dois ramos de sândalo

transforma um
em alaúde
e queima o outro
com os teus lábios

para que nos perfume
enquanto amamos



***



     estou cansado

exausto

de interrogar
homens
livros

quis consultar o jarro da vida


poisei nos seus lábios os meus
e murmurei –
para onde irei quando morrer?


ele
cheio de vinho forte

respondeu-me –
bebe na minha boca
sacia-te à vontade

nunca voltarás da morte nunca



***



se estou perdido de bêbado
nem sonhas como sou feliz

se admiro o rosto rosado
da minha amante

sou feliz

se sonho que não existo
como sou afortunado


porque a morte é um nada
antigo e moderno calcinado
e no nada não há sofrimento
nem o tormento
do inferno



***



ó estulto que sábio te julgas

desassossegado

entre o infinito do passado
e o infinito do futuro

queres criar
um limite entre estes dois infinitos?

sendeiro


elege uma árvore

senta-te à sua sombra

com paciência redobrada

de um jarro de vinho

bebe com a tua amada

até que te esqueças

da tua fraqueza e impotência



***



mais uma aurora

dia após dia invento um novo brilho no mundo e como lamento como me angustio  por não poder agradecer ao seu criador
mas tantas são as rosas que me contentam e tantos os lábios que me consolam quando aos meus se unem

deixa o teu alaúde amante os pássaros já cantam

vamos amar



***



pouco mais precisas

de entender

ou saber
que tudo é mistério


a criação do universo

e a tua
o destino do universo

e o teu


sorri aos mistérios
como quem sorri a um perigo
        que desconheces


nada irás saber
quando franqueares
os portais da morte


paz aos homens
de boa e má vontade
ao mal e ao bem
no escuro silêncio
do obscuro além



***



que farei hoje? irei à taberna      ao prostíbulo

sentar-me no jardim

lerei algum livro

beijarei doce mulher?

um pássaro voando
cruza os céus
donde vem
quem é
para onde vai?
tão pequeno
e grácil
já o não vejo


oh embriaguez de ave
no azul subtil
oh arrependimento do homem
na sombra fresca de um templo



***



o mundo é um roseiral

visitas –
as borboletas
e os rouxinóis


elas oferecem-nos cor
dúctil movimento
eles canções


se não tiver
rosas
violetas
ramos
folhas


éden
e farol que me guie
terei por flores

as estrelas
e por jardim
teus cabelos soltos
ao vento norte



***



servos
não nos alumiem
os convidados adormeceram

estão pálidos de morte

hirtos estão e de frio gélidos
reflexo da imagem do sepulcro


deixai as velas
não há luz nem amanhecer
para os mortos



***



quando te vergares ao peso da dor
quando os teus olhos secarem
pensa nas verdes plantas que a chuva asperge

quando te sentires desesperado
no esplendor do dia
e quando desejares
que uma noite sempiterna caia sobre o mundo
pensa como uma criança
pensa nela ao despertar

ah como é bom amar gratuitamente



***



escondo a minha melancolia
de toda a gente
com a vergonha da tristeza

as aves feridas também se escondem para morrer


serve-te de vinho
bebe
ouve as minhas graças
e as desgraças ocultas

quero vinho
quero rosas
canções de alaúde
quero amar


e tu amante quero-te
indiferente ao meu pesar



***



muito aprendi

outro tanto esqueci

outrora

na minha memória
cada coisa
saber
especulação

tinha o seu lugar

se algo estava à direita

não podia
ser desviado

para a esquerda
e se à esquerda estava

não poderia ser desviado

para a direita


só atingi a paz
quando com desprezo
tudo repudiei


e acabei por aprender
que não nos é possível
afirmar ou negar nada
e que em tudo há


uma praga



***



neste mundo é nosso destino sofrer


para depois

em agonia morrer


com algum prazer


não quereis dar à terra

quanto antes
o vosso corpo miserável

ele que é a fonte
de todo o padecimento?

e a alma
perguntais
pela qual deus aguarda
para o juízo final?


ficai descansados
que logo vos responderei
quando for avisado
por alguém que regresse
da terra dos mortos



***



santo homem

despe essa roupagem
de que tanto te envaideces
e que não tinhas quando nasceste

veste antes o manto da pobreza



***



embriagado ou sedente


apenas me apetece dormir
dormir

profundamente


não quero saber
o que é o bem
e o que é o mal
porque o bem
está para o mal
como o mal
está para o bem


afinal

o que é o bem
o que é o mal?


para mim
dor e prazer são semelhantes


quando me sinto feliz
concedo à felicidade
modesto lugar
já que bem sei
que a dor não tardará
    para a afastar



***



nunca conseguiremos incendiar o mar

nunca iremos convencer o homem

dos perigos e manhas da felicidade


no entanto
todos sabemos

que o mais pequeno embate
é letal para o jarro cheio
e deixa ileso o vazio



***



olha à tua volta

aflições
desgraças
desespero
angústia
choro
e ranger de dentes

os nossos melhores amigos morreram

a tristeza é a nossa companheira
inseparável


mas
continua homem
abre as mãos
alcança o que anseias
faz das tripas coração


enterra nas profundezas
o cadáver do teu passado



***



és infeliz
tu que choras
que gemes
que escondes o rosto no leito
e em segredo padeces?


não penses

se não pensares na tua dor
não sofrerás jamais


se a tua atribulação é forte
se te faz pensar na morte
lembra os justos
que injustamente sofreram
desde o princípio dos tempos

goza os teus momentos



***



pobre homem pobre infeliz
nunca saberás nada
nunca serás capaz de desvendar um que seja
dos mistérios que nos cercam

já que as religiões

em uníssono
te prometem
um paraíso

faz tu
por um

nesta terra criar


o delas
ou invenção ou ilusão

engano



***



todos os reinos e riquezas
por uma taça de vinho generoso
todos os impérios e suas fortalezas
por um cálice de vinho novo

todas as bibliotecas e livros
toda a sabedoria
pelo doce aroma do vinho
por um beijo à sombra de uma tília

todos os hinos de amor
pela canção do copo que se esvazia
e por um corpo que se anuncia



***



senhor desbarataste a minha alegria

ergueste uma muralha

de pedra armada
entre o meu coração
e o da minha amada

os cachos da minha vindima foram degolados

vou morrer senhor
morro com dor

mas tu
cambaleias como os embriagados



***



silêncio
oh minha dor

deixa que busque mezinha
é preciso viver
é urgente

porque os mortos
não rememoram
e eu apenas
desejo nem que seja
por instantes
voltar a ver
a face das
minhas amantes



***



alaúdes taças
jarros perfumes
risos olhos amendoados
profundos

brinquedos que o tempo
faz corromper


austeridade trabalho
meditação solidão
oração renúncia


cinzas que o tempo espalha
cinzas

cinzas
e nada mais






RUBAIYAT
VERSÃO JMA     2015




JOSÉ MARIA ALVES

(BLOGUE PESSOAL)

(SITE PESSOAL)