RUBAIYAT
VERSÃO JMA 2015
Nota - o blogue não aceita a formatação original dos poemas, alterando o modo de leitura.
Download do texto
integral do blogue em »
http://www.homeoesp.org/livros_online.html***
BREVITAS VITAE
"A vida é demasiado breve para que se beba mau vinho" (Goethe)
***
todos os que me conhecem
sabem que não ciciei orações
aos ouvidos das divindades
sabem também
que nunca ocultei meus vícios e os meus mais terríveis defeitos
nem os mais torpes desejos nem impiedades
nem os intensos cios
por vezes humano
outras animal sem tino
sem destino e sem razão
não estou certo se existe justiça divina
ou misericórdia
existam ou não estou em paz confiante e indiferente
porque sempre fui autêntico
apesar de imprevidente
***
o que é que valerá mais
sentar-me num bar
copo na frente
a examinar a minha consciência
ou
prostrar-me numa igreja
com o pensamento decadente
e a alma ausente?
hoje
pouco me preocupa saber se deus existe ou não
- porque sei que nunca o saberei -
e se no seu querer que destinação me reserva
se é que para mim algo guarda
ou me ampara
***
sejamos compassivos
para com os que se embriagam
de vinho e mulheres nas vielas da perdição
também nós feitos de pó
temos defeitos
se pensarmos nos pobres
nos deserdados
nos que com frio tremem
em todos os infelizes que em abundância gemem
nos que à fome morrem
sem voz
sentiremos a felicidade a paz e a tranquilidade
baterem-nos à porta com a doçura
de quem nada procura
porque não somos nós
***
se és sábio não semeies o sofrimento
domina-te sempre
controla-te a cada momento
não te abandones à ira
cólera
e vingança
queres ter na alma a paz?
então sorri
ao destino que te fere
mas não firas ninguém
que à espada morre
quem com espada mata
não comandes
nem te deixes comandar
e só trabalhes
se fores obrigado a trabalhar
e tu jovem sem capataz
bebe e ama
até que mais não sejas capaz
***
faz por seres feliz hoje
o que é que te trará o dia de amanhã?
alegria ou tristeza
calmaria ou borrasca
vida ou morte?
agarra uma garrafa de vinho
o colo de uma mulher
senta-te à luz da lua
e bebe
pensando que amanhã
talvez seja em vão
que a lua te procure
***
de quando em vez
os homens lêem a bíblia
o corão
o guitá
livros que o pensamento consagrou
mas quantos se deleitam diariamente com a sua leitura
quantos cumprem os seus decretos
quais conhecem os evangelhos?
nos bordos de todos os cálices
recheados de vinho
nas bordaduras dos lábios
das mais belas donzelas
triunfa cinzelada
uma secreta verdade
a todos dada a saborear
***
o vinho é o nosso tesouro
os bares os nossos palácios
sede embriaguez
nossos fiéis companheiros
e o doce hálito das mulheres
o elixir que nos faz viver
ignoramos o medo
as inquietações
porque sabemos
que as nossas almas
os nossos corações
os nossos cálices
e nossas roupas manchadas
nada têm a temer
do pó
da água
do fogo
***
neste mundo dá-te por contente com raros amigos
não inspires a mesma simpatia que alguém te inspirou
escolhe atento
os que te hão-de acompanhar
e se alguém tiveres para amar
aprende a ser isento
e esquivo
antes de apertar a mão a um homem
pensa se ela não te ferirá um dia
antes de beijares uma mulher
certifica-te que não serás seu escravo
***
esta jarra foi em tempos idos
um pobre amante
que sofria
cativo
o desdém altivo
de uma donzela
as asas da jarra
eram o braço
que rodeava
o alvo pescoço
da sua amada
que por tudo e por nada
o escorraçava
***
como é pobre
vil
e doente
o coração
que não sabe amar
que não se embriaga de amor
a melancolia da solidão
de um corpo plangente
nu e só no esplendor da noite
se no mundo
há gente que não ama
certamente não entende
na ausência do amar
a palavra deslumbrante do
sol
a leve doçura do
luar
belo a deslizar
a perder de ver
pelo verde vale do prazer
***
a minha juventude regressa hoje
com o vigor das giestas amarelas
a anunciar a primavera
com todas as suas flores
serve-me vinho amada
vinho cor de rubi
vinho de todas as cores
vinho ardente
vinho vinho
novo
velho
vinho vinho
não sou exigente
não importa qual
quero vinho
urgente
e um beijo candente
talvez até a melhor colheita
me pareça tão acre
como a vida maltratada
e pela dor pisada
***
terás algum poder sobre o teu destino?
imbecil
tolo
criatura frágil e inquieta
por que te amedronta o porvir
por que tens medo do que há-de vir?
julgas-te sábio um entendido
que sabes tu?
asno
goza o momento
goza o presente
porque o futuro
é como quem mente
que te pode trazer o futuro
alegria ou sofrimento?
quem o sabe e se o sabe
nunca to dirá seguramente
***
aqui está a estação inefável
eis a estação da esperança
em que almas sedentas de outras almas
procuram uma quietude perfumada
cada flor será por acaso
a excelsa mão branca de moisés?
cada brisa será por ventura
o leve hálito de jesus?
***
pelo caminho oblíquo
seguro
não vai o justo
nem o iníquo
não vai o homem
que o fruto da verdade
não colheu
se porventura o colher
da árvore da ciência
ouve
ele sabe
que os dias passados
e os dias que estão para vir
em nada se distinguem
do infeliz primeiro dia
da criação
***
para lá dos limites da terra
para lá dos limites do infinito
procurava eu o céu e o inferno
e nada vi
uma voz séria e avisada murmurou –
o céu o inferno
estão em ti
***
nada
me preocupa
nada
me afecta
ergue-te
dá-me vinho
néctar dos deuses
a tua boca
esta noite
como de outras vezes
a rosa mais formosa
do céu
e da terra
serve-me vinho
rubro como o teu rosto
a tornar leve e ligeiro
o meu arrependimento
e alados os meus remorsos
como leves são os teus sorrisos
***
a aragem da primavera refresca e aviva o corpo das rosas e na sombra anilada do horto acaricia o rosto da minha amada
na plenitude que vivemos esqueço o nosso passado
tão sedutora
é a amorosa doçura do agora
***
poderei abarrotar de pedras o oceano
porque faço eu o que não devo?
sinto desprezo por ateus
e antipatia pelos devotos
há por aí quem me certifique de que irei para o céu
ou de que para o inferno na morte partirei?
o que é o inferno
e o céu?
conheces alguém que tenha visitado
essas regiões misteriosas e incompreensíveis?
se há que nos diga
se não
que se cale
quem fala não sabe
quem sabe não fala
***
sendo bebedor ignoro quem te modelou ó enorme jarrão
só sei que feito foste para abraçar três medidas de vinho
e que um dia a morte te despedaçará
então
perguntar-me-ei
por muito tempo
para que foste modelado
por que foste feliz
e porque
já não és mais que pó
e eu aqui
***
fugazes são os nossos dias
correm velozes como a água dos rios
e os ventos secos do deserto
dois dias me deixam indiferente
o ontem que morreu
e que já sepultei
e o amanhã que ainda não nasceu
e que não sei
se e como o viverei
***
quando nasci?
não lembro
o que lembra minha mãe
quando morrerei?
não sei
ninguém memora
o dia do seu nascimento
nem está apto
a augurar a hora do seu decesso
vem
ó doce amante
quero deslembrar
no embriagamento
a dor da nossa ignorância
do nosso sofrimento
***
costurando
as tendas
da sabedoria
caí no fogo da dor
e fui convertido em cinzas
o anjo azrael cortou os cabos da tenda
a morte ofereceu a sua glória
por uma canção
***
por que me angustiam
os meus muitos pecados?
não será inútil a minha melancolia
a discórdia interior?
que existe depois da morte?
o nada ou
a misericórdia
vá homem
vive em paz
***
nos mosteiros
igrejas
sinagogas
mesquitas
refugiam-se os débeis
temerosos do inferno
quem experimentou
o poder de deus
não cultiva no seu coração
as funestas sementes
do medo da súplica
do terror da oração
***
na primavera costumo sentar-me à sombra de uma árvore frondosa junto a um campo de flores silvestres
quando esbelta moça me oferece húmido e rosado seu cálice de vinho e amor não quero saber de minha saúde
nem me preocupa a salvação
na verdade
seria menos que um cão
se estivesse com tal apreensão
***
o mundo interminável –
um grão de poeira no vazio
toda a ciência e saber
que o homem acumulou –
palavras
as gentes
os animais
e as flores
dos sete climas –
sombras
a tua contínua meditação –
nada
***
mesmo que acredites ter solucionado o mistério da criação diz-me –
qual será o teu destino?
mesmo que dês por garantido
ter desnudado a verdade
de todos os seus véus
diz-me –
será que conheces o teu destino?
mesmo que admitas a felicidade
de ter vivido durante cem anos
e que outros cem anos te aguardam
diz-me –
mas será que conheces o teu destino?
***
capacita-te
de que um dia
um qualquer dia
a tua alma abandonará o corpo
e serás arrastado por um véu flutuante
entre o conhecido
e o desconhecido
enquanto esperas
sê feliz
bebe ama
não sabes donde vens
nem para onde vais
saberás pelo menos
quem és?
***
aqueles que temos por maiores
sages sábios
filósofos
caíram no abismo da ignorância
no entanto esses brilhantes opacos foram as lanternas de referência das suas épocas jazentes
mas afinal que fizeram essas sumidades?
pronunciaram algumas frases esotéricas
escreveram alguns textos obscuros
deitaram-se e
adormeceram para sempre
***
o coração disse-me –
quero saber
quero aprender
ensina-me
tu que tanto estudaste
que mergulhaste
em livros aos milhares
disse eu a primeira letra
e a minha alma respondeu-me –
sei
o um
é o primeiro
do número
que
nunca acaba
***
os mistérios
ah os mistérios
mistérios
ninguém os pode entender
como também
ninguém é capaz de ver
o que se oculta
por detrás das aparências
todas as nossas moradas
são temporárias
excepto a derradeira
na terra que nos há-de comer
bebe vinho e ama
basta de palavras inúteis
em lodaçal escritas
***
a vida é um jogo insípido
com dois prémios certos –
dor e morte
feliz a criança que morreu ao nascimento
mais feliz ainda aquele que não chegou a nascer
***
na feira que atravessas teatro da vida
não intentes encontrar amigo
tão pouco busques refúgio
porto seguro
aceita a dor com alento
sem a esperança de um bálsamo
que não existe
sorri à adversidade
não peças
nem impeças ninguém
que sorria para ti
estarás a desperdiçar o teu tempo
***
que a roda da fortuna gire
gire
e volte a girar
que rode sem parar
sem esperar pelo juízo dos sábios
abdica de contar os astros
que pelo céu sem fim se amplificam
medita nesta certeza –
hás-de morrer
não voltarás a sonhar
os cães vadios
devorarão o teu corpo
ou então a cada hora
serão os muitos vermes
da sepultura
***
estava com sono e a sabedoria disse-me –
as rosas da felicidade nunca perfumaram
nem nunca irão perfumar o sono de ninguém
em vez
de te abandonares
a este irmão da morte
bebe vinho ama
tens para dormir a eternidade
porque o sono
é uma morte temporária
e a morte
um sono
para sempre prolongado
***
o criador do céu
e da terra
ultrapassou-se displicente
quando criou a dor
e a insuflou em toda
esta gente
lábios como rubis
cabelos perfumados
rostos perfeitos
quantos sois vós na terra?
***
não consigo contemplar o céu
tenho os olhos minados de lágrimas
aprazíveis centelhas
são os fogos do inferno
confrontados com as chamas
que me corroem
o paraíso
para mim
não é mais
do que um instante
um agora
de paz
***
sonho e sono sobre a terra
sono debaixo da terra
sobre a terra
e por baixo da terra
corpos que jazem
para onde quer que vá
onde quer que fique
o nada
um deserto de nada
homens que chegam
homens que se vão
que partem
para a terra do nada
***
antigo mundo
atravessado a galope
pelo cavalo branco do dia
pelo cavalo negro da noite
és o palácio triste
onde cem reis
sonharam com a glória
e cem monarcas
o amor almejaram
e todos amanheceram ó lamento
no seio da mais intensa dor
e no meio do maior pranto
***
o vento que veio do sul secou a esplêndida rosa para quem o rouxinol cantava
devemos orar pela sua morte ou por nós?
quando a morte
secar os nossos corpos
outras rosas estarão para vir
irão nascer
e alegremente hão-de sorrir
***
abdica da recompensa que ontem merecias e que te não foi concedida
sê feliz
ama
não deplores seja o que for
que o teu coração a nada se prenda
tudo o que te há-de acontecer
está escrito no livro
escrito no alfabeto da verdade
folheado pelo vento
e soprado pela eternidade
***
quando vos ouço falar da felicidade que é pertença dos eleitos
limito-me a dizer –
eu só confio no vinho
e nos lábios da minha amante
quero metal sonante
e não quero
vãs promessas
o ribombar do tambor só apraz à distância
***
bebe
o teu vinho
beija
a tua amada
único caminho
só há um caminho
para a vida eterna
o vinho e o amor
vão
doar-te
a juventude
perdida
divina a estação
que perdura
das rosas
do vinho
do amor
amizade pura
goza o momento que te escapa
e que é a tua vida
férias que a morte te dá
***
bebe vinho
ama
estima os amigos sinceros
muito tempo terás
para dormir sepultado
sem vinho
sem mulher
sem amigo
sem amar
ouve este segredo
que do coração te confio –
as túlipas fanadas
nunca irão ressuscitar
***
cochicha a argila ao oleiro –
lembra-te homem
que és hoje como eu fui
não tornes a violar o que já violastes
cuida de mim
não me maltrates
***
oleiro se és assisado não magoes a argila com que adão foi modelado
que tens tu sobre a roda
a mão do rei
o coração de príncipes?
que fazes homem?
***
a papoila colhe a sua cor púrpura do sangue de um rei morto
a violeta nasce da excelsa beleza da face de um adolescente
***
séculos e séculos
perdem-se nos tempos
enquanto
se sucedem auroras
crepúsculos
e os astros caminham
pelos céus
cuida da terra que pisas
que cavas para semear
pode ser
pode acontecer
que o torrão
que vais sangrar
para deitar a semente
tenha sido outrora
o olho lânguido
de um adolescente
***
um narciso na margem do ribeiro oscila ao sabor da brisa
não brotarão as suas raízes dos lábios de uma mulher?
que os nossos passos sejam leves acariciando a erva tenra
frágil
que cresce viçosa no lameiro
fonte de flores variadas
talvez tenha nascido das cinzas
de belos rostos onde já vingou
a claridade das túlipas encarnadas
***
ontem
um oleiro
laborava
na sua roda
modelava um cântaro
e o que modelava
eram
crânios de nobres
e mãos de mendigos
***
bem e mal
combatem
pela primazia
neste planeta lobos e predadores
ladrões mentirosos
criminosos políticos ranhosos
o céu não é responsável
pela celebridade
desgraça
ou felicidade
que o destino nos reserva
não lhe agradeças
nem o condenes
vás por onde fores
já que nada se preocupa
com as tuas míseras alegrias
ou com as mais terríveis das dores
***
se lavrado o teu coração o semeaste diligente com a semente do amor então não viveste inutilmente
se procuraste ouvir atento a voz de deus e a guardaste no teu pensamento não foi inútil o teu viver
como o não foi se sorrindo e amando ergueste a tua taça de vinho em homenagem ao prazer
***
age prudente
caminhante
arriscado
é teu caminho
e afiada a
espada do destino
evita as amêndoas doces
da orla das estradas
têm veneno as danadas
***
um jardim
uma jovem esbelta
uma bilha de vinho
meu anseio
meu azedume
meu paraíso
e meu inferno
mas alguém terá havido
a quem foi dado conhecer
o céu ou o inferno?
***
tu cuja face
obscurece
as rosas do campo
tu
cujo rosto
parece
um ídolo chinês
sabes por mero acaso
que o teu olhar malhado
a veludo bordado
na flor de uma vinha
transformou o rei da babilónia
no bispo vicioso
que no jogo de xadrez
foge da rainha?
***
a vida vai-se esgotando
que resta das antigas cidades?
o mais pequeno dos toques
é letal para a rosa
que pela manhã vai
desabrochando
bebe vinho
ama abraça paixões
contempla a lua
que tantas civilizações
viu nascer e morrer
e há-de ver
***
oh a voz da sabedoria
diz-me
dia após dia
minuto a minuto –
a vida é tão breve
não me assemelho às plantas
que podadas
voltam a reverdecer
quando morrer
nem raízes nem sementes
me farão reviver
***
retóricos filósofos sábios silentes
morreram
e não se entenderam
sobre a essência
do ser
e do não-ser
incomoda-te que te chamem ignorante?
paciência
continua a saborear
os melhores vinhos
os lábios mais belos
esquece se pecas os pecadores
esses sabedores
que se confortem
com suas mãos
e com uvas secas
***
o meu nascimento nada trouxe de diferente nenhum bem ou mal ao mundo a mim indiferente
a minha morte não abreviará o seu tempo não diminuirá o seu brilho nem o seu tamanho
não há ninguém
em toda esta multidão
que me elucide
por que vim para que vim porque terei
de partir
sem que de alguém
o peça ou requeira
***
tombaremos pela vereda do amor
o destino irá esmagar-nos
oh bela
oh donzela
oh cálice encantado
oh agrado do meu sentido
levantai-vos
dá-me a chama dos teu lábios
dá-me o teu líquido inviolado
antes que o fim de tudo
venha sem ser esperado
e me transforme em nada
***
à felicidade
só lhe conhecemos o nome
um rótulo numa jarra opaca
o meu amigo mais velho
é o vinho novo
acarinha com os olhos
e com os dedos das mãos
aquilo que falta nos faz
e que nunca nos burla –
a jarra transbordante
do sangue do vinhal
***
a cidade
é agora refúgio de gazelas
leões deambulam pelos jardins
onde antes tocavam músicos
tudo dorme
agora num outeiro
onde pastam burros domésticos
***
não busques cego a felicidade
a vida é breve como um suspiro
as cinzas de reis e príncipes condes e marquesas voam
no redemoinho vermelho que contemplas
os governantes apodrecem nas catacumbas da mentira
do roubo e do vício os ricos e poderosos apodrecem nos jazigos
o universo é um sonho
a vida é um sonho
***
senta-te e bebe
goza a felicidade
que ao rico não foi concedida
bebe ele amealha
ama ele trabalha
escuta os alaúdes dos amantes
que na sua harmonia e melodia
são os exactos salmos de david
não te entranhes no passado
não fiques ansioso com o futuro
que os teus pensamentos o teu lucro
esteja sempre presente
no eterno agora na eternidade
enquanto a ambição para ti jaz
na tumba dos insensatos
este é o segredo da paz
***
medíocres acanhados e orgulhosos
estabelecem
entre o corpo e a alma
diferenças que não entendo
eu só vos posso dizer
que o vinho
faz findar o medo
e nos dá
a tranquilidade perfeita
e que amar
nos dá felicidade
consequência
da ausência do pensamento
meditação e contentamento
***
que mistério é esse
do movimento dos astros
que giram e giram
no espaço sem fim
que mistério
agarra-te com força
à corda da sabedoria
vive o teu dia
beija os lábios da moça
que com seu perfume
te inebria
bebe do vinho
da alegria
não há mistério
***
não tenho medo da morte
mais
quero este acontecimento
inquestionável inelutável
que me impuseram
no dia do meu nascimento
nascença
afinal que é a vida?
um benefício que não escolhi
e que devolverei com indiferença
***
a vida passa
veloz
como uma caravana
pára de cavalgar
e procura ser feliz
moça virgem
donde te vem essa tristeza?
bebe um pouco deste vinho
dá-me de beber
já se declaram
os primeiros sinais da noite
vem
***
ouço dizer às vezes oiço
que os amantes do vinho
serão condenados
ao luminoso inferno
os bebedores juntos com os fornicadores
chamas enxofre dores
verdades não as há
mas há mentiras
que são tão claras
que ninguém as pode negar
pecado original fogo infernal limbo lateral
se todos os que se embriagam
se todos os que amam
vão para o inferno
o paraíso está quase vazio
***
já sou velho sim velho
mas tenho amor para dar
a minha paixão por ti
mata-me de amor e desejo
não deixo por isso de alagar
o meu cálice de vinho
tal é o meu sentimento
a intensidade de amar
que sem piedade o tempo
anulou o discernimento
da minha razão
florescendo o leito e
fazendo murchar
sem caridade
a rosa que brilhava
no meu peito
***
tu que me atormentas ó imagem de uma nova alegria
vozes de amor encantadoras que me atentais
vejo a minha amada e só a sua doce voz oiço
deus há-de perdoar-te diz ela suave
não aceito esse perdão
não pedi qualquer absolvição
***
um pedaço de pão negro duro de semanas
um pouco de água fresca
a sombra de uma árvore
e teus olhos escuros rasgados
em perfeito corpo implantados
não há quem eleja
imperador mais feliz que eu
nem esfarrapado mendigo
que mais triste seja
***
o amor começa carnal obsessivo
possessivo
porquê tanta doçura
tanta ternura
tantos beijos e promessas
no início?
e continua caminhante receoso da perda
carinhos
afagos e mimos
tanto deleite e enlevo
depois?
acaba odioso cansado
entediado
porquê?
se hoje e amanhã
no prazer e gozo
que dilacera o coração
porquê?
***
haverá um dia em que as nossas almas irão deixar nossos corpos para trás
sobre as nossas pobres e inertes cabeças alguém colocará um ladrilho
uma lápide inscrita que dirá –
aqui jaz
em eviterna paz
quem na taberna
muito bebeu
amou e sofreu
depois
as tuas cinzas misturadas com as minhas
serão modeladas pelas mãos de um oleiro
ou de um pedreiro
a construir um amor perfeito
***
vinho único conforto alívio bálsamo
para um coração que sofre
enfermo
vinho
perfumado a almíscar
vinho
cor de rosas
a florescer num ermo
serve-me vinho
vinho
destruidor
a aplanar
o inferno ardente
da minha amargura
vinho
e o teu alaúde
de cordas de seda
minha adorada
minha amada
***
tanto se fala de um criador
que criou os seres
todos os entes
céus terras e mares
os homens suas gentes
para que os criou
ele o supremo senhor
um primeiro
e logo após dois
para os destruir depois?
há os feios e os belos
os com defeitos e os escorreitos
os que nascem ricos e os pobres
os que morrem à fome
à nascença e as crianças
saudáveis e doentes
porquê porquê?
não sei nada
não compreendo nada
não compreendo
***
os homens divertem-se
a errar pelo carreiro
do que pensam ser
o verdadeiro conhecimento
uns buscam-no
outros afirmam
que o encontraram
não
um dia a voz virá
e bem alto clamará –
não há caminho
não há caminho
***
oferece como sacrifício à alvorada o vinho do teu cálice os beijos dos teus lábios túlipas de primavera
oferece ao sorriso rasgado de uma jovem em flor o vinho com que brindas ao amor
bebe e olvida
bebe e ama beber e amar
que o punho da dor
em breve
te irá derrubar
***
vinho vinho
que percorra sem cessar
as minhas
veias
vinho
amor
vinho
que me suba
à cabeça
cálices
silêncio
nada
é verdade
vinho
cálices
depressa
urgente
que envelheço
***
quando for sepultado
do meu túmulo
exalará
inebriante aroma a vinho
forte
tão forte
tão poderoso
que embebedará
quem por ali passar
a tranquilidade emanará
do meu sepulcro perfumado
impedindo os amantes
de dali se apartarem
não conseguirão partir
nem tão pouco afastar
***
no delírio da vida
só serão felizes
os que sábios pensam ser
e os que não cuidam
da sua instrução
tolos
curvei-me sobre todos os segredos
sobre todos os mistérios do universo
e desanimado
refugiei-me na solidão
cegos surdos e mudos
invejando
***
dizem-me –
deixa de beber
não bebas
respondo –
quando bebo
oiço as rosas
as túlipas
os jasmins
e também
o que a minha amada
em segredo e para si
em mim
me diz
***
meditas
em que meditas?
nos teus antepassados?
eles que são pó sobre pó
nas suas virtudes e celebridade?
deixa que sorria
toma este jarro
vamos beber
vamos amar
e escutar o momento
o silêncio das galáxias
em movimento
***
a aurora alagou de rosas a abóbada celeste
no ar diáfano e puro perde-se a canção do último rouxinol
o aroma do vinho é mais leve e generoso
e pensar que neste momento em cada parcela do mundo
há aluados ensimesmados que sonham com glória honras e reputação
oh como são macios os teus cabelos doirada a tua aura e perfumado teu hálito
amada
***
amigo não faças projectos
não pesques em lagos secos
tens a certeza de poder colher
os frutos do que agora plantaste
de terminar a frase que começaste?
amanhã talvez possamos estar
tão longe desta choupana
tão distantes desta caravana
que se afasta afasta sem cessar
como os que já abalaram
há milhares de anos
e que ninguém recorda
ou comemora
***
senta-te comigo na margem deste ribeiro esbelta adolescente de rosto trigueiro olho-te com os olhos do futuro que o estar sozinho me concede
e penso com melancolia
o vaso e o cálice
pleno de vinho
que serás um dia
***
há muito há anos que a minha juventude
é no reino da morte jacente
primavera da minha vida
perdida
onde se perderam
primaveras idas
oh adolescência
que passaste
sem que eu
me apercebesse
da brevidade
desta vida na terra
tal como
dia após dia
se amolece a suavidade
da primavera
***
embriaga-te irmão
com todos os perfumes
de vinhos novos e velhos
de todas as mulheres
de músicas
de cores
das flores
não faltes em afagos
agasalho e blandícias
às tuas amadas
olha que a vida é breve
feita de pontes sem margens
e que não tardarás
a afundar-te na terra
como a água dos poços e das fontes
***
a paz neste mundo?
loucura vaidade
eterno descanso?
demência também
depois de morto
um sonho breve
ressurgirás na erva
frágil e indefesa
que todos calcam
ou na flor que no estio
o sol irá queimar
***
pergunto-me –
afinal o que é meu
o que tenho por certo
ou possuo incontroverso?
pergunto-me –
o que restará de mim
depois da passagem
para o reino dos mortos?
a vida é um incêndio
que devasta a floresta imensa
em escassos minutos
chamas vermelhas
cinzas que o vento espalha
e com paciência dispersa -
tal é a existência humana
e a minha essência
cinzas cinzas
***
evidência e dúvida
erro e verdade
palavras vazias como bolha de ar
a boiar no tanque dos nenúfares
com as cores do arco-íris
a cintilar
ou turva
como nuvem a pairar
em dia de escuridão incontida
bolha que é alegoria da vida
***
ao poder dos monarcas
às riquezas das áfricas
prefiro um púcaro de vinho
e mulheres para beijar
no silêncio dos bosques amar
perdidamente um corpo ao luar
numa esteira de linho
admiro o amante que geme de felicidade
de dor e pelo amor que a vida tece
desprezo o cínico que boqueja uma prece
***
ouve este segredo duradouro –
quando o primeiro alvor
alumiou o mundo em trevas
adão era uma criatura sofrida
sentado em venenosas ervas
que almejava pela noite
e clamava pela morte
***
a lua já brilha luzeiros
amanhã o sol iluminará
uma cidade silenciosa e hirta
vinhos a dormir nas bilhas
nas garrafas nas taças
e jovens ingénuas
nas sombras das florestas
ao quadragésimo sétimo dia a morte entrará pelas frestas
***
a ninguém pedi a vida ou pedi?
não pedi para viver insisti?
esforço-me por aceitar
sem gozo nem cólera
tudo o que a vida
tem para me ofertar
partirei sem questionar
sobre tão estranha condenação
que com outros me faz partilhar
este mundo cão
***
não esqueças
colhe todos os frutos
que as tuas mãos
alcancem
vai a todas as festas
banquetes e romarias
escolhe as taças maiores
e as mais belas mulheres
deus não se importa
com teus vícios e virtudes
como atinges o prazer
e com o que fazes do teu corpo
deus tem mais que fazer
***
noite escura
espectros fulgentes
silêncio
a folhagem estática
num ramo incandescente
como o meu pensamento
de uma rosa
exemplo que julgas
ser do teu esplendor
cai uma pétala
onde estarás
neste momento
tu que me brindaste
com o cálice de cristal
e lábios purpurinos
pelos quais suspiro?
nenhuma rosa
se desfolha junto
de quem acaricias
com teu vinho
e sei que ninguém
te pode entregar a felicidade amarga
com que eu te embriagava
no bosquete de
granito e pinho
***
se soubesses
como pouco me afectam
os quatro elementos
e as cinco faculdades
ah se o soubesses
diz-se que alguns filósofos gregos
conseguiam colocar cem problemas
aos seus auditores
que me interessa
que importância tem?
é-me indiferente
o problema dessa gente
serve vinho
sim vinho
toca o alaúde
e que as suas notas
evoquem a brisa
que como a vida foge
ah serve o vinho
beija-me
dá-me o teu carinho
***
quando a sombra da morte aluir sobre mim e os meus dias pelos dedos de uma mão contados chamar-vos-ei amigos meus
levar-me-eis deitado
quando o corpo que vivo foi se transformar em pó do deserto
ireis moldar um jarro que enchereis de vinho
talvez então oh mistério
me vejais ressuscitar
e seja eu o herdeiro
dono de um novo
e mais justo império
***
pouco sei ou me importa saber
mentira teologia
verdade filosofia
bondade religião
maldade autoridade
mas procuro sempre um vinho de qualidade
- nasci e vivi com ele –
uma cama em desalinho
- não a sei fazer nem quero aprender -
os meus cabelos embranquecem meus ossos enrijecem
sessenta anos
ser feliz
hoje ou nunca
amanhã
talvez já não tenha forças
talvez seja tarde
com a alma vendida ao diabo
***
onde estás tu meu amigo
das noites errantes
das boémias cantantes?
onde estão os nossos amigos
tê-los-á abatido a morte
na sua vida sem sorte?
onde estão agora?
pareço ainda ouvir
as suas alegres canções
estarão mortos
ou ébrios de connosco
tanto
ter vivido?
***
quando eu finar
comigo hão-de morrer
as rosas
os ciprestes
os lábios vermelhos
e o vinho perfumado
nem mais uma aurora
nem crepúsculo
dores alegrias
sofrimento
o mundo deixará de existir
o mundo só é real
e só pode ser vivido
como efeito do pensamento
de limitado cérebro nascido
***
esta é a única verdade –
somos peões
de partida
de xadrez
por deus
jogada
move-nos
em frente
para trás
para os lados
detém-nos
faz-nos avançar
recuar
e depois
quando o quer
vai-nos atirando
um a um
peças sem préstimo
para fora do tabuleiro
para o jogo do nada
***
a abóbada celeste
é um cálice voltado
agitam-se os sábios
agitam-se debalde
que o teu amor
pela tua amada
seja igual ou parecido
ao que o jarro
sente pela taça
lábio com lábio
boca com boca
trocam o seu sangue
em puro enlevo
***
os sábios nunca te irão ensinar seja o que for
mas as carícias dos amaviosos cílios de mulher
irão transportar-te para o reino da felicidade
os teus dias estão severamente contados
em pouco tempo o teu corpo será dado à terra
bebe vinho ama
e afastado procura nele
na mulher e no embriagado
o afago que pelo conhecimento
te não é doado
***
o calor do vinho
é libertação
o calor do amor
arroubo interior
libertação do passado e do futuro
encantado pela luz
quebra os grilhões
caminha com ou sem verdade
ama e bebe
a liberdade
***
quando era criança
na igreja sentado
não rezava qualquer oração
mas voltava com o coração
cheio de esperança
agora e até ver
velho e cansado
quando me sento numa delas
procuro a sombra
o silêncio e a frescura
e deixo-me adormecer
***
na terra matizada caminha alguém
que não é judeu nem muçulmano
católico ou cristão
budista hindu
nem rico nem pobre
não invoca deus
não quer saber das suas leis
não crê na verdade
nem nunca afirma nada
na terra matizada
quem é este homem
triste e corajoso?
***
antes de saber como acariciar
um rosto amoroso como rosas
quantos espinhos não terás de arrancar
da tua própria carne perfurada
olha
esse pente
era um pedaço de madeira
quando a talharam
grande foi a sua dor
mas
hoje o pente
afaga cabelos
brilhantes perfumados
de uma adolescente
***
há um momento em que a brisa da manhã abre as rosas e lhes sussurra que as violetas já despiram as suas roupas
só é conveniente que viva aquele que se compraz na visão do sono de esbelta mulher
alcança a sua taça
esvazia-a
e lança-a fora
***
tens medo do amanhã
sabes porventura
o que é te pode acontecer?
sê audaz
para que o azar
não justifique os teus temores
e essa tua agonia
que aumenta a cada dia
liberta-te de tudo
não te comprometas com nada
não indagues nos livros
nem questiones outros
que como tu
nadam nas águas da ignorância
o âmago do destino é insondável
indecifrável
***
senhor senhor diz-me
deste-me olhos
para que a beleza
dos seres
das mulheres
me deslumbre
concedeste-me o dom da felicidade
queres que eu abdique sem mais
do prazer das maravilhas do mundo?
impossível senhor
tão impossível como virar uma taça
sem derramar o seu vinho
ou tocar uma virgem
sem colher o seu amor
***
na taberna da minha aldeia
pedi a velhos sábios
notícias dos que já partiram
tio zé gabriel respondeu –
só nos levam a dianteira
é tudo o que sei
tio antónio velhaco ouviu e disse –
eu sei um pouco mais
morreu fodeu-se
e não mais voltará
bebe o teu vinho
vá
bebe
e esquece
***
olha ouve
uma rosa tremula
no sopro da brisa
o rouxinol canta-lhe
uma breve canção
uma nuvem adormeceu
no céu azul sobre o mar
vamos beber
vamos amar
vamos navegar nas ondas
do prazer
sem lembrar que não tardará
uma rajada a desfolhar a rosa
a levar o tépido canto do rouxinol
e a nuvem e sua sombra
a despertar o sol
***
uma rosa dizia –
do mundo sou a maravilha
será possível
que um perfumista
me faça sofrer?
cantava um rouxinol –
um dia de felicidade
anuncia um ano de lágrimas
***
esta noite ou talvez amanhã
poderei já não existir
tempo terminado
nesta terra
navio
a afundar
chegou o momento
de pedir vinho
e uma mulher para amar
com quem te comparas
com um tesoiro
com um jarro de oiro?
julgas tu moribundo
que os ladrões
irão violentar a tua cova
para furtar um defunto?
***
o amor esse forte sentimento doce e inebriante como o mais puro dos licores
emoção pacífica ou violenta que quando não arrasa e devasta o coração do amante não é amor
as brasas da lareira
darão o calor
de uma fogueira?
noite e dia
em sonho ou vigília
em toda a sua vida
o amante contorce-se
de prazer e dor
***
podes mergulhar na noite
nas profundezas do oceano subir aos montes
escalar as muralhas dos fortes
caminhar no horizonte
em vão
adão e eva
tão amargo deve ter sido
vosso primeiro beijo
para que nos tenham gerado
tão desesperados
***
bebo vinho como a raiz do salgueiro bebe a água do idílico ribeiro da minha pobre aldeia bebo o vinho pura das nossas vinhas antigas
só deus é deus e ele tudo vê só há um deus e ele tudo sabe tudo prevê não é o que está escrito?
quando me criou não sabia que eu beberia vinho e pelos caminhos da estúrdia com outros boémios vaguearia?
se não bebesse nem amasse a ciência de deus seria um fracasso
poderá ele castigar o que assim criou?
poderá castigar-me a mim
que a ele devo o que sou?
***
o vinho é alforria
de dúvidas e cuidados
de medos e fados
indecisão e embaraços
é o mágico mãos de rubi
que te irá transportar
momento a momento
à terra do esquecimento
***
fecha o teu livro de orações
bíblia
corão
guitá
pensa com atrevimento
e defronta sem temor
o céu e a terra
faz do pobre e do oprimido a tua dor
ama mais que o deus dos homens amou
***
como é débil o homem
fatal e implacável o seu destino
como é dissimulado e insincero
juramentos
juramentos falsos
juramentos que não cumprimos
indiferentes à vergonha e à desonra
frieza da mentira
na terra da hipocrisia
até eu
por vezes
vivo na insensatez
destempero e desacerto
mas tenho por escusa
estar embriagado
ou apaixonado
***
ouve-me
se este mundo
mais não é do que ilusão
por que desesperas
por que motivo te afliges
e desiludes?
por que pensas noite e dia
na tua infelicidade e na tua dor?
abandona a tua alma
à fantasia das horas
o teu destino já está escrito
na abundância ou na fome
não há para ele apagador
e ninguém para o apagar
porque deus sonha
e se não sonha dorme
***
a auréola que rodeia esta frágil rosa é um sinal do seu aroma ou a débil defesa que na bruma desfeita deus lhe deu?
os cabelos sobre o teu rosto amada serão a noite que teu olhar há-de dissipar?
acorda desse sono amada o sol abrilhanta as nossas taças
bebamos
amemos
que um corpo luminoso
é mais belo que a escuridão
***
decide-te
não contemples mais o céu
rodeia-te de belas
e aprazíveis mulheres
acaricia-as com
suavidade
e amor
de que suspeitas?
ainda desejas rogar a deus?
muito antes de ti
outros homens lhe dirigiram
fervorosas orações mantras
ave-marias credos petições
já se retiraram para o reino da morte
e ninguém sabe se deus
de longe ou perto
na sua contrição os viu ou ouviu
***
aurora felicidade pureza
um enorme rubi
brilha em cada taça
toma estes dois ramos de sândalo
transforma um
em alaúde
e queima o outro
com os teus lábios
para que nos perfume
enquanto amamos
***
estou cansado
exausto
de interrogar
homens
livros
quis consultar o jarro da vida
poisei nos seus lábios os meus
e murmurei –
para onde irei quando morrer?
ele
cheio de vinho forte
respondeu-me –
bebe na minha boca
sacia-te à vontade
nunca voltarás da morte nunca
***
se estou perdido de bêbado
nem sonhas como sou feliz
se admiro o rosto rosado
da minha amante
sou feliz
se sonho que não existo
como sou afortunado
porque a morte é um nada
antigo e moderno calcinado
e no nada não há sofrimento
nem o tormento
do inferno
***
ó estulto que sábio te julgas
desassossegado
entre o infinito do passado
e o infinito do futuro
queres criar
um limite entre estes dois infinitos?
sendeiro
elege uma árvore
senta-te à sua sombra
com paciência redobrada
de um jarro de vinho
bebe com a tua amada
até que te esqueças
da tua fraqueza e impotência
***
mais uma aurora
dia após dia invento um novo brilho no mundo e como lamento como me angustio por não poder agradecer ao seu criador
mas tantas são as rosas que me contentam e tantos os lábios que me consolam quando aos meus se unem
deixa o teu alaúde amante os pássaros já cantam
vamos amar
***
pouco mais precisas
de entender
ou saber
que tudo é mistério
a criação do universo
e a tua
o destino do universo
e o teu
sorri aos mistérios
como quem sorri a um perigo
que desconheces
nada irás saber
quando franqueares
os portais da morte
paz aos homens
de boa e má vontade
ao mal e ao bem
no escuro silêncio
do obscuro além
***
que farei hoje? irei à taberna ao prostíbulo
sentar-me no jardim
lerei algum livro
beijarei doce mulher?
um pássaro voando
cruza os céus
donde vem
quem é
para onde vai?
tão pequeno
e grácil
já o não vejo
oh embriaguez de ave
no azul subtil
oh arrependimento do homem
na sombra fresca de um templo
***
o mundo é um roseiral
visitas –
as borboletas
e os rouxinóis
elas oferecem-nos cor
dúctil movimento
eles canções
se não tiver
rosas
violetas
ramos
folhas
éden
e farol que me guie
terei por flores
as estrelas
e por jardim
teus cabelos soltos
ao vento norte
***
servos
não nos alumiem
os convidados adormeceram
estão pálidos de morte
hirtos estão e de frio gélidos
reflexo da imagem do sepulcro
deixai as velas
não há luz nem amanhecer
para os mortos
***
quando te vergares ao peso da dor
quando os teus olhos secarem
pensa nas verdes plantas que a chuva asperge
quando te sentires desesperado
no esplendor do dia
e quando desejares
que uma noite sempiterna caia sobre o mundo
pensa como uma criança
pensa nela ao despertar
ah como é bom amar gratuitamente
***
escondo a minha melancolia
de toda a gente
com a vergonha da tristeza
as aves feridas também se escondem para morrer
serve-te de vinho
bebe
ouve as minhas graças
e as desgraças ocultas
quero vinho
quero rosas
canções de alaúde
quero amar
e tu amante quero-te
indiferente ao meu pesar
***
muito aprendi
outro tanto esqueci
outrora
na minha memória
cada coisa
saber
especulação
tinha o seu lugar
se algo estava à direita
não podia
ser desviado
para a esquerda
e se à esquerda estava
não poderia ser desviado
para a direita
só atingi a paz
quando com desprezo
tudo repudiei
e acabei por aprender
que não nos é possível
afirmar ou negar nada
e que em tudo há
uma praga
***
neste mundo é nosso destino sofrer
para depois
em agonia morrer
com algum prazer
não quereis dar à terra
quanto antes
o vosso corpo miserável
ele que é a fonte
de todo o padecimento?
e a alma
perguntais
pela qual deus aguarda
para o juízo final?
ficai descansados
que logo vos responderei
quando for avisado
por alguém que regresse
da terra dos mortos
***
santo homem
despe essa roupagem
de que tanto te envaideces
e que não tinhas quando nasceste
veste antes o manto da pobreza
***
embriagado ou sedente
apenas me apetece dormir
dormir
profundamente
não quero saber
o que é o bem
e o que é o mal
porque o bem
está para o mal
como o mal
está para o bem
afinal
o que é o bem
o que é o mal?
para mim
dor e prazer são semelhantes
quando me sinto feliz
concedo à felicidade
modesto lugar
já que bem sei
que a dor não tardará
para a afastar
***
nunca conseguiremos incendiar o mar
nunca iremos convencer o homem
dos perigos e manhas da felicidade
no entanto
todos sabemos
que o mais pequeno embate
é letal para o jarro cheio
e deixa ileso o vazio
***
olha à tua volta
aflições
desgraças
desespero
angústia
choro
e ranger de dentes
os nossos melhores amigos morreram
a tristeza é a nossa companheira
inseparável
mas
continua homem
abre as mãos
alcança o que anseias
faz das tripas coração
enterra nas profundezas
o cadáver do teu passado
***
és infeliz
tu que choras
que gemes
que escondes o rosto no leito
e em segredo padeces?
não penses
se não pensares na tua dor
não sofrerás jamais
se a tua atribulação é forte
se te faz pensar na morte
lembra os justos
que injustamente sofreram
desde o princípio dos tempos
goza os teus momentos
***
pobre homem pobre infeliz
nunca saberás nada
nunca serás capaz de desvendar um que seja
dos mistérios que nos cercam
já que as religiões
em uníssono
te prometem
um paraíso
faz tu
por um
nesta terra criar
o delas
ou invenção ou ilusão
engano
***
todos os reinos e riquezas
por uma taça de vinho generoso
todos os impérios e suas fortalezas
por um cálice de vinho novo
todas as bibliotecas e livros
toda a sabedoria
pelo doce aroma do vinho
por um beijo à sombra de uma tília
todos os hinos de amor
pela canção do copo que se esvazia
e por um corpo que se anuncia
***
senhor desbarataste a minha alegria
ergueste uma muralha
de pedra armada
entre o meu coração
e o da minha amada
os cachos da minha vindima foram degolados
vou morrer senhor
morro com dor
mas tu
cambaleias como os embriagados
***
silêncio
oh minha dor
deixa que busque mezinha
é preciso viver
é urgente
porque os mortos
não rememoram
e eu apenas
desejo nem que seja
por instantes
voltar a ver
a face das
minhas amantes
***
alaúdes taças
jarros perfumes
risos olhos amendoados
profundos
brinquedos que o tempo
faz corromper
austeridade trabalho
meditação solidão
oração renúncia
cinzas que o tempo espalha
cinzas
cinzas
e nada mais
RUBAIYAT
VERSÃO JMA 2015
JOSÉ MARIA ALVES
(BLOGUE PESSOAL)
(SITE PESSOAL)